sábado, 15 de maio de 2010

Dilma e Lula continuam apelando

1) Transcrito da coluna de Fernando Barros e Silva - Folha de S. Paulo

Mandela no liquidificador.

Lula comparou Dilma Rousseff a Nelson Mandela no programa de TV do PT, anteontem à noite. É um disparate. A comparação entre o próprio Lula e Jesus Cristo, de que ele tanto gosta, soa menos extravagante. Ou, para falar em lulês: Dentinho pode fazer um gol extraordinário, um gol de Pelé. Continuará sendo Dentinho...

Mandela e Dilma participaram nos anos 60 de grupos adeptos da luta armada em seus respectivos países -num caso contra o governo racista, no outro contra a ditadura. Ambos foram presos políticos. Fim das "coincidências". Mandela já era uma liderança contra o apartheid na África do Sul quando foi detido. Permaneceu quase três décadas na cadeia e saiu de lá para se consagrar como um dos mitos do século 20.

Ou, como disse Lula na TV: "O tempo passou e o que aconteceu? Mandela virou um dos maiores símbolos da paz e da união no mundo". E, no caso de Dilma, o tempo passou e o que aconteceu? Nada. Pelo menos nada que merecesse registro histórico até que Lula a retirasse do anonimato para inventá-la como candidata. Tudo isso a partir de 2006, depois que os nomes até então cotados no PT foram inviabilizados numa nuvem de escândalos.

Aproximar as biografias de Dilma e Mandela é mais ou menos como colocar no site oficial da candidata a foto de Norma Bengell durante a Passeata dos Cem Mil. A imagem induz quem olha a achar que aquela é a petista, e não a atriz. Inventa-se, assim, uma Dilma fictícia.

Disso Paulo Maluf entende. Sempre que é cobrado sobre Celso Pitta, ele jura que também se decepcionou muito com o afilhado. Mas faz questão de repetir o conselho que teria dado quando escolheu um sucessor negro: "Falei nos olhos do Pitta: se você for um bom prefeito, vai se eleger governador de São Paulo. Se for governador, vai se tornar o Nelson Mandela brasileiro".

Lula, é claro, não é Paulo Maluf. E Dilma, é óbvio, é bem diferente de Celso Pitta. E o leitor já deve estar perguntando o que é que Nelson Mandela tem a ver com tudo isso.

2) Transcrito da coluna de Augusto Nunes - Veja

A comparação que estuprou a verdade é um insulto a Mandela

O presidente Lula precisou de duas frases e uma comparação infamante para afrontar a Justiça Eleitoral, escancarar a própria indigência intelectual e assassinar a verdade: “Uma parte da história da Dilma me lembra muito a do Mandela”, disse no programa ilegal do PT. “Uma vez o Mandela me disse que só foi para o confronto quando não deram outra saída para ele”. O estupro da História foi chancelado pela candidata que mente como quem respira: “Eu lutei, sim. Pela liberdade, pela democracia”.

A comparação é mais que uma impostura atrevida, é mais que outro estelionato eleitoreiro. É um insulto ao homem que redesenhou o destino da África do Sul. Nelson Mandela lutou pelo fim do apartheid, pela restauração da liberdade e pelo nascimento do regime democrático. Dilma Rousseff serviu a grupos radicais que queriam trocar a ditadura militar pela ditadura comunista. Ele aceitou o confronto depois de propor todas as soluções pacíficas possíveis. Ela aderiu à luta armada em 1967, um ano antes da decretação do AI-5.

Mandela protagonizou combates reais. Dilma não passou de figurante em assaltos a bancos e cofres particulares. Ele ficou preso 27 anos por liderar a imensa maioria negra. Ela ficou três anos na cadeia por obedecer a extremistas ignorados pelo povo. Mandela venceu. Dilma perdeu. A ditadura militar foi derrotada pela resistência democrática de que jamais participou.

Mandela chegou ao poder pela vontade popular. Dilma, que nunca disputou nem eleição de síndico, é fruto da vontade de Lula. Ele negociou com os carcereiros brancos a extinção do apartheid. Ela despreza os democratas que negociaram a anistia de que foi beneficiária e declara guerra a todos os oposicionistas. Mandela é um grande orador, um líder vocacional e um político sedutor. Dilma não diz coisa com coisa, faz tudo o que manda o mestre e tem a simpatia de um poste.

Nelson Mandela é um estadista. Dilma Rousseff é uma farsa.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Helio Oiticica derrota o Inferno outra vez

Eu iniciei a minha vidinha de artista plástico aos seis aninhos, quando minha mamãe contou pra vizinha D. Lurdes que estava preocupada com o Renatinho porque viu um desenhinho meu de uma casinha com janelinhas no centro de um jardinzinho cheio de arvorezinhas e florezinhas, com umas montanhinhas sob um céu de nuvenzinhas ao fundo. A preocupação era que a casinha tinha uma frente enorme e terminava pequenininha. “Será que o Renatinho tem algum problema...?”

A D. Lurdes era ninguém menos do que a destacada artista contemporânea Maria de Lourdes Mader Pereira Novaes que, ao olhar para o ‘desenhinho’, viu que eu tinha feito uma paisagem em perspectiva. Fui recrutado, desde então, a ter aulas de artes com a D. Lurdes e sou honrado por ter sido o primeiro aluno (cronologicamente falando, é claro) do histórico Atelier Livre de Artes Plásticas - ALAP, mais tarde Centro de Arte Contemporânea - CEAC. Com menos de dez anos, fui apresentado a uma coisa chamada ‘oiticica’. É claro que eu achava que ‘oiticica’ queria dizer maluquice. Depois soube que Oiticica era uma pessoa, um artista. Que eu chamava de ‘seu’ Titica. De qualquer jeito, pra minha inocência infantil, era um maluco.



Quando mais tarde – bem depois da morte dele – eu comecei a fazer as minhas próprias maluquices, mesmo sem ainda entendê-las, compreendi a genialidade de Helio Oiticica, por ter dado – como tantos antes dele – um passo à frente, condição fundamental para que a arte permaneça sempre viva. Quem dera eu! Não vou perder meu tempo nem o das minhas duas leitoras em adjetivar a grandeza de Helio Oiticica apenas como ‘pósconcretista’ ou ‘antiartista’, coisas de críticos de arte – dos quais eu não gosto e é mútuo.

Agora vem um incêndio e surrupia dos mortais uma coleção inestimável de obras do meu ‘seu’ Titica. Ó, minhas duas leitoras, acreditem: quando eu soube, agora burro velho, fiquei sem ar, chorei feito o Renatinho da casinha com janelinhas e nuvenzinhas. Eu, que sempre achei que depois de morrer, meus quadros me carregariam através dos tempos. Mas, de repente, vem um fogo e...

Só sosseguei o espírito quando me dei conta de que quanto mais morra a carne do homem e quanto mais o fogo queime suas obras, ainda assim, a nossa (que pretensão minha, ein ‘seu’ Titica!) inspiração, a nossa inquietação, a nossa maluquice enfim, mais a nossa arte vai perambular por aí levando luz, inclusive até aos demônios, para sua derrota. Só sosseguei porque entendi que a obra de Helio Oiticica queimou, mas ele ganhou do Inferno outra vez.

Desculpem o desabafo. Ufa!

Como é que ele sabia???

Há mais ou menos oitenta anos atrás, muito antes da segunda guerra, muitíssimo antes da guerra fria, o cara escreveu este poema. Como é que ele sabia que, depois da guerra fria, depois da globalização, a gente seria exatamente assim?



Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão princípe - todos eles princípes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa